DPE-GO registra aumento de furtos de comida e itens de higiene em Goiás na pandemia

A Defensoria Pública do Estado de Goiás (DPE-GO) verificou que chegaram a 22 as audiências de custódia na qual o órgão atuou de julho a outubro de 2021 em que a prisão em fragrante ocorreu por furto famélico, quando a pessoa furta comida, medicamento ou outro item necessário para a sua sobrevivência ou de outra pessoa. De julho a dezembro do ano passado, foram 27 casos, todos com pedido de liberdade e anulação do processo.

Das 145 audiências de custódia em que a DPE-GO representou um investigado ou acusado de um crime, 18,6% foram os casos de furtos famélicos. Antes da pandemia da covid-19, nem 10% das análises judiciais de prisões em flagrante nas quais os defensores públicos estaduais atuavam eram crimes cometidos para a sobrevivência da pessoa.

“De fato houve uma percepção de aumento. Não é exclusiva do Estado de Goiás. Defensorias do País relatam aumento de crimes famélicos”, afirma o defensor público estadual Leonardo César Stutz. O membro da DPE-GO destaca que a média de casos de furtos famélicos no período avaliado pelo órgão chega a um a cada cinco dias.

“Esses são casos analisados em audiências de custódia durante os dias da semana. Mas o número pode ser bem maior porque ocorrem audiências de custódia de fim de semana.” O alerta de que a situação pode ser agravado ainda mais durante a pandemia ainda tem mais um componente, de acordo com Stutz. “Esses são casos que chegam ao conhecimento do Judiciário. Quantas situações de furtos famélicos nós nem ficados sabendo?”, questiona o defensor público.

Direito a liberdade

Nos casos em que a DPE-GO atuou, o preso em flagrante teve garantido o direito a liberdade. Leonardo Stutz explica que o próximo passo é procurar a família da pessoa. “A Defensoria Pública busca garantir que todos tenham direito a assistência jurídica.”

Segundo o defensor público, o auto de prisão em flagrante muitas vezes evidencia a situação considerada insignificante pela condição de necessidade do autor do furto. Mesmo assim, a pessoa é apresentada ao Poder Judiciário. “O Ministério Público solicita o arquivamento de vários desses casos”, observa.

Para Leonardo Stutz, a grande discussão está no momento em que o agente do Estado na linha de frente, no caso do policial militar, recebe a informação de um crime e faz o flagrante. “Existem delegados que entendem que não poderiam deixar de lavrar o auto de flagrante. Mas só pode lavrar se constatar um crime. Se é um caso insignificante para a DPE, o MP e a Justiça, por que não é para a Polícia Civil?”

Produtos de higiene pessoal

Stutz relata que já defendeu na Justiça pessoas que foram presas em flagrante por furtarem produtos de higiene pessoal, como desodorante, ou um calçado, como no caso de um chinelo, “além dos gêneros alimentícios”. “Geralmente são pessoas em situação de vulnerabilidade muito grande. E o primeiro ou um dos primeiros contatos que têm com o Estado é a polícia”, observa o defensor.

De acordo com o membro da DPE-GO, prender alguém que comete um furto famélico, além de ser a resposta mais grave ao fato, “não tem qualquer efetividade”. “Se as pessoas não tiverem condição de acessar o mercado de trabalho e melhora de vida, a prisão altera pouco o quadro social. A polícia não pode ser a única política pública que chega a essa pessoa”, afirma Leonardo Stutz.

O defensor público estadual Leonardo César Stutz relata que já defendeu na Justiça pessoas que foram presas em flagrante por furtarem produtos de higiene pessoal, como desodorante, ou um calçado, como no caso de um chinelo | Foto: Divulgação/OAB-GO

Dados por delegacia

A delegada Paula Meotti, da Divisão de Comunicação e Cerimonial da Direção Geral da Polícia Civil de Goiás (PC-GO), relata que a dificuldade apontar dados no Estado sobre a situação dos furtos famélicos está no fato de que não há uma delegacia específica para essa situação. “Eu precisaria conversar com dezenas de delegados para dizer se houve a sensação do aumento dessa modalidade delitiva.”

Mas, na atuação diária como delegada, nas diferentes delegacias em que atuou, percebe-se como mais presente o furto de alimentos em mercados e supermercados. “O furto famélico é uma subtração sem violência ou grave ameaça. Ocorre quando a pessoa está em uma situação de vulnerabilidade e, para garantir a subsistência, subtrai gêneros alimentícios”, descreve Paula Meotti.

Discussão teórica

De acordo com a delegada, cada caso precisa ser analisado de acordo com o que ocorreu, as circunstâncias pessoais do autor daquele furto e os objetos que foram furtados. Ao analisar a atuação da Polícia Civil, Paula afirma que existe uma discussão jurídica.

“Há doutrinadores que de defendem que seria uma excludente de tipicidade pelo princípio da insignificância. Outros que seria excludente de antijuridicidade pelo estado de necessidade. há ainda uma última corrente que diz ser uma excludente de culpabilidade pela inexigibilidade de conduta diversa, muito pouco aceita.”

E continua: “O STF [Supremo Tribunal Federal] e STJ [Superior Tribunal de Justiça] têm alguns julgados em que se considerou a excludente de tipicidade material com a aplicação do princípio da insignificância. Nesse raciocínio, poderíamos dizer que não houve a prática de crime e o delegado, justificando, conseguiria deixar, inclusive, de autuar em flagrante”. Paula observa que, a depender da teoria adotada, “há alteração nas consequências jurídicas”.

E ainda há uma quarta possibilidade: “Se considerarmos como excludente de antijuridicidade ou ilicitude, há entendimento de que o delegado precisa lavrar o flagrante e encaminhar o inquérito ao Judiciário apontando a situação”. Paula Meotti conclui que, em regra geral, o delegado precisa mandar o caso de furto famélico para a Justiça, “mesmo que conclua o inquérito pelo excludente”.

Pacote de arroz

A delegada se recordou de um caso em que atuou em Jataí, no Sudoeste goiano, no qual uma mulher desempregada e sem dinheiro furtou um pacote de arroz. “Pelo vestuário, local da residência e entrevista dava para perceber que era uma situação de penúria mesmo, estava com as vestes gastas e morava em um bairro bastante humilde. A casa dela era muito simples.”

Paula Meotti conclui que, em regra geral, o delegado precisa mandar o caso para a Justiça | Foto: Arquivo pessoal

O coordenador do Centro de Apoio Operacional (CAO) Criminal do Ministério Público de Goiás (MP-GO), promotor de Justiça Felipe Oltramari, vê a situação da pandemia de covid-19 como um indício de que a situação dos furtos famélicos se agravou. “Em contato com os promotores que atuam nas audiências de custódia, eles têm reportado um aumento.”

De acordo com Oltramari, é necessário analisar cada caso para ver se trata-se de furto famélico ou não. “Um pacote de canetinhas coloridas não é um item que comporta uma natureza famélica”, exemplifica o promotor. O coordenador do CAO Criminal diz que não existe um parâmetro uniformizado para analisar casos de furto famélico.

Oltramari afirma que o detentor da ação penal é o promotor. “Não cabe ao policial militar ou civil fazer essa aferição. Quem deve fazer a aferição do fator famélico é o promotor de Justiça, com base na verificação dos elementos colhidos pela Polícia Civil.” E lembra que quando no inquérito não fica claro que se trata de um furto famélico, a apuração se dá apenas no âmbito judicial.

Furtos famélicos no STF

“Já chegaram às instâncias superiores [STJ e STF] casos que discordo dos membros do MP-GO que atuaram, como dos desembargadores e ministros. Mas se chega um caso de furto de caixa de bombom ao Supremo, por exemplo, outros mil idênticos não chegarão.” Oltramari lembra que a maioria dos furtos famélicos é arquivada na primeira instância da Justiça ou é pedida a absolvição do autor do crime.

De acordo com o promotor, o acordo de não persecução penal aproxima mais uma vez o promotor do autor do furto famélico. “Será mais uma oportunidade, mesmo que não seja essa a ideia, para que o autor do fato explique as circunstâncias que o fizeram furtar o item de um comércio. Em geral, os casos que não são de pronto observados como famélicos serão à frente para não virarem processos longos.”

Há um ano à frente do CAO Criminal do MP-GO, o promotor lembra de ter atuado em casos nos quais a pessoa furtou um pacote de bolacha ou uma caixa de bombom. “E obviamente não foram processados”, pontua Oltramari.

Coordenador do CAO Criminal do MP-GO, promotor de Justiça Felipe Oltramari | Foto: Reprodução

 

 

Por: Augusto Diniz para O Hoje