Mãe de Alto Paraíso é denunciada ao MP e conselho tutelar por permitir que filho use “roupas femininas”
Garoto tem cinco anos de idade, mas desde os três tem vontade de se vestir com peças do universo feminino. Mãe recebeu cinco denúncias, mas os casos foram encerrados
Construída em cima da camada de cristais batizada de Paralelo 14, a cidade de Alto Paraíso é um conhecido reduto esotérico e místico do interior de Goiás. Povoada e visitada também por comunidades alternativas, a cidade possui um laço com a diversidade de ideias, propiciada pela integração de povos diferentes, entre indígenas, quilombolas, religiosos e sincretistas.
Contudo, a sexualidade de um garoto de cinco anos, que segundo psicólogos deveria ser uma qualidade individual, tornou-se tópico de debate na cidade e vem chamando tanta atenção quanto as afamadas energia e belezas naturais do município. Por deixar que seu filho de 5 anos se vista como quer, com roupas consideradas femininas, a mãe do garoto, a professora Paula Smith, foi denunciada ao Ministério Público de Goiás e ao Conselho Tutelar da cidade.
Apesar das iniciativas anônimas, o caso foi encerrado sem interferência dos dois órgãos. De acordo com o conselheiro tutelar Uenis Ferreira, que recebeu o caso, quatro denúncias anônimas foram protocoladas no órgão municipal. “Segundo as denúncias, a mãe estaria obrigando o filho a se vestir com roupas femininas, então, convidei formalmente a mãe para comparecer no Conselho afim de esclarecermos os fatos”.
Para Uenis, ela explicou que a ideia partiu do próprio garoto. “Ficou evidente que era interesse dele e que não era uma coisa forçada. Conversamos com o menino também, que confirmou as informações passadas pela mãe com precisão e ciência do que estava dizendo. Por fim, orientamos a mãe para que buscasse atendimento psicológico para tentar entender melhor a situação”.
O conselheiro reforça que procurou a família com a finalidade de esclarecer fatos apontados na denúncia e não para fazer juízo de valor sobre as escolhas da criança. “Em nenhum momento a gente impôs nosso conceito de certo ou errado à mãe ou à criança. Queríamos saber se era uma situação forçada. Como não era, o caso foi encerrado”.
Apesar das denúncias, Uênis revela que a população de Alto Paraíso, por ser mística, tende a respeitar os espaços individuais. “Tivemos denúncias, sim, mas a população de modo geral respeita a decisão, não há objeção quanto a isso. A cidade tem cerca de 7 mil habitantes, mas trata-se de um povo esclarecido”.
No MP de Alto Paraíso, o caso foi recebido pela promotora Josiane Correia. Após apurar a situação, ela entendeu que a criança não foi colocada em situação de vulnerabilidade e que não há motivos para que o órgão intervenha na situação. O Caso foi arquivado. O Mais Goiás tentou contato com a promotora, mas foi informado de que Josiane está de férias e não concederá entrevistas.
Estilo de vida
Paula afirma que o ímpeto de escolher suas próprias peças de roupa ocorreu há dois anos, quando R.S. tinha apenas três. Segundo ela, em um dia de brincadeiras, o garoto pediu para uma amiga que emprestasse suas roupas para que ele as vestisse. À época, pensando se tratar de uma brincadeira comum, a mãe permitiu, mas acabou percebendo depois que, para o filho, atitude era um assunto sério.
“Ele tinha dois para três anos quando começou a vestir minhas roupas e sair andando pela casa. Foi aos quatro, quando viemos do Espírito Santo que pediu para brincar com as roups de uma amiga próxima, cuja residência nos serviu de abrigo por um tempo. Ele ficava encantando com as roupas dela. Foi nesse momento que ele decidiu o que queria”.
No início, Paula afirma ter pensado se tratar de uma brincadeira, coisas do mundo da fantasia. “Achei que ele estava interpretando um personagem, até que percebi que era uma vontade para além da brincadeira. Ele queria usar constantemente”. Levou um tempo até que a situação fosse entendida e aceita pela mãe. “Não sabia como lidar, conversei com ele, afirmei que era um menino e estava tudo bem que brincasse, mas pedi para dar um tempo dos vestidos”.
A reação de R.S. não foi boa. Sem saber como se expressar, passou a urinar pela casa. “Isso durou uns dois dias, até que me deu um ‘clique’ para deixar ele usar o que quiser. Essa foi uma forma dele demonstrar o que queria. Com a determinação dele, foi me ensinando a lidar com a situação nesse lugar não binário”. Apesar da preferência por roupas femininas, o garoto afirma que não quer ser menina. “Ele sempre gostou de cavalos, mas desde que adquiriu gosto por peças ‘femininas’ afirma que quer ser um unicórnio”, revela ela entre risos.
Familiares e vizinhos
Divorciada do Pai de R.S. há três anos, ela afirma que o ex-marido quer aceitar a condição do filho, mas precisa de que uma profissional ateste que ele é “normal”. A situação com o restante da família materna também não é simples. “Meu pai acha que ele brinca de boneca porque eu deixo. Minha mãe acolhe melhor, mas fica com receio de deixar ele sair na rua com vestido. Na casa deles, meu filho fica numa bolha”.
Na vizinhança, a reação é variada. Entretanto, por se tratar de uma cidade com apenas 7 mil habitantes, todos já o conhecem e até respeitam. “Tem meninos que não querem brincar com ele, mas tem outros que nem ligam para a roupas, respeitam a decisão dele. Não sabemos de nenhuma determinação de pais proibindo filhos de se relacionarem com meu filho. Ninguém, pelo menos, teve coragem de expor o preconceito, mas ele existe, as denúncias são prova disso”.
Problema
A discussão pública sobre a sexualidade e preferências pessoais de R.S. tiveram início em março deste ano, quando Paula foi aprovada em um concurso público e teria que adequar sua rotina ao cago de professora. “Não queria deixar de ver meus filhos então coloquei R.S. na escola onde meu filho mais velho, de sete anos, estuda. É uma escola tradicional, de freiras, sabia da possibilidade de não dar certo, mas era a única instituição da cidade a oferecer um horário que ficava bom para nós. Tive que tentar”.
A mãe destaca que a escola não esboçou reações com o fato de R.S. utilizar uniforme feminino. No entanto, após uma semana de experiência, pais de alunos passaram a reclamar da situação. “Uma professora disse que choveu de pais na secretaria perguntando qual banheiro ele iria usar, aí não deu certo. Ele também não quis ficar lá. Ele é muito livre e a instituição é muito rígida. São incompatíveis. Agora ele está sem estudar, mas cogito iniciar um processo de home schooling para ele retomar os estudos o quanto antes”. R.S. Está no Jardim Três.
Como as denúncias surgiram após a experiência no colégio, Paula suspeita que a iniciativa tenha partido de pais de estudantes. Abordada informalmente na feira pelo referido conselheiro tutelar, ela afirma que a postura do órgão foi de buscar entendimento sobre a situação.
“Estava na feira quando fui ‘convidada’ a comparecer no conselho. Queriam entender, porque as denúncias diziam que eu o obrigava a usar roubas femininas, o que já foi esclarecido. Estavam realmente querendo entender, apesar do pouco preparo. Afinal, não foram capacitados com leituras sobre questões de gênero, então vieram com bagagem que eles tem. Apesar da indicação, não o levarei em psicólogo, já que nós lidamos bem com a questão”.
Resiliência
Uma das características de R.S. que mais chamam atenção de Paula é a resiliência. Apesar de estar exposto a preconceitos e bullying, o garoto afirma “não ligar”. “Eu converso, alerto para a possibilidade das pessoas implicarem com ele, mas ele diz: não ligo, não em importo. Então procuro ficar bem perto e deixo ele fazer as próprias escolhas”.
O apoio dentro de casa não vem apenas da mãe. Segundo Paula, o irmão mais velho – apesar de ser mais alinhado aos padrões sociais – não entende o preconceito enfrentado pelo mais novo.
“Quando voltamos da reunião no conselho tutelar ele colocou um vestido para brincar com R.S. Foi uma forma de dizer que apoia o irmão. Ele me disse que acha chato que o ‘pessoal se preocupe com a roupa que R.S.veste’. Então a relação deles é bem natural mesmo”. Então, achamos tudo isso um absurdo. A princípio, nem entendi direito as denúncias. Mas é assunto superado. É vida que segue”, conclui.
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