Falhas estruturais em presídios favorecem facções
Mais de 50% das unidades goianas têm condições ruins ou péssimas, o que dá força a grupos criminosos, segundo especialistas.
Em um contexto de crise no sistema prisional, O POPULAR levantou que mais de 50% das unidades goianas tiveram suas condições avaliadas como ruins ou péssimas, conforme últimos relatórios de inspeção do Conselho Nacional de Justiça (CNJ). Falhas estruturais são apontadas por especialistas como um dos pontos que favorecem a presença de grupos criminosos dentro das unidades prisionais, gerando disputas internas e rebeliões.
Especialista em sistema prisional, a socióloga e professora da Universidade Federal do ABC (UFABC) Camila Nunes Dias explica que a falta de estrutura física é um cenário propício para crescimento de facções criminosas. De acordo com ela, as evidências desse fenômeno já foram vistas em quase todos os Estados brasileiros, com aumento de encarceramento, superlotação, deterioração das condições das prisões e da convivência dos presos. “Nessa situação surgem os grupos que acabam se organizando nesse espaço”, explicou.
Professor de Direito da Universidade Federal de Goiás e da Pontifícia Universidade Católica de Goiás (PUC-GO), Gaspar Alexandre Machado de Sousa afirma que não é surpresa alguma que pessoas se unam e formem grupos dentro de um ambiente como um presídio. De acordo com o especialista, detentos mais articulados que fazem parte de facções criminosas conseguem dominar e impor suas vontades aos outros presos.
Para ele, não adianta enviar alguns detentos a unidades federais. “Se você separa, outros vão surgir”, avalia. O professor afirma que é necessário trabalhar com as causas da violência, e não as consequências. “Depois vem com estudos para acabar com as facções, mas é um processo de enxugar gelo”, pontuou.
Presidente da Comissão de Segurança Pública da seccional goiana da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB-GO) e ex-secretário de Administração Penitenciária e Justiça, Edemundo Dias afirma que falta vontade política para resolver o problema. Conforme o advogado, não existe projeto de ressocialização e reintegração no Estado, questões que segundo ele diminuiriam a influência das facções. “Quando o Estado oferece os serviços, dá assistência, a facção deixa de ocupar esse papel político. Porque a facção assume o comando evocando a ineficiência do Estado. Só que eles cobram caro, porque a população carcerária fica a mercê deles”, disse.
Conforme Dias, os jovens, que segundo ele são maioria nos presídios goianos, viram massa de manobra dentro do presídio. O professor Gaspar também aponta que pesquisadores do sistema prisional já falam há algum tempo sobre o fato de as prisões se tornarem “universidades do crime”, com jovens sem instrução, de classe baixa, tendo que dividir espaço com detentos já envolvidos com o crime há algum tempo.
Com outra perspectiva, o presidente da Comissão de Direitos Humanos da OAB-GO, Roberto Serra, acredita que o Estado tenta imputar às facções criminosas as rebeliões e motins. “Sempre que elas acontecem, falam que se trata de grupos organizados, para tomar espaço de poder”, disse. No entanto, para ele, os próprios dados dos relatórios do CNJ mostram que não é bem assim. “Qualquer ser humano que conviver com essa insalubridade toda vai se revoltar”, disse.
Segundo o presidente, grupos criminosos aproveitam espaços assim para ter o domínio. É por isso que, de acordo com ele, hoje o Estado não tem o controle dos presídios. “Quando a Comissão de Direitos Humanos vai fazer inspeção, tem que fazer acordo, ter uma conversa prévia com os presos, porque se não permitirem a inspeção, a comissão não entra”, afirmou.
Encarceramento
O pesquisador e promotor de Justiça Haroldo Caetano, licenciado do Ministério Público do Estado de Goiás (MP-GO), afirma que o maior problema é o encarceramento em massa. Ele, que já atuou na área de execução penal do MP, pontua que a estrutura nos presídios, com aumento no número de vagas, não consegue acompanhar o crescimento da população carcerária. “É preciso mudar o ritmo do encarceramento. Tanto dos provisórios quanto dos condenados.”
De acordo com Caetano, os presídios são ambientes propícios para a formação de quadrilhas, uma vez que grupos se estruturam em um ambiente precário em busca de proteção. Assim, para o promotor, facção é um nome novo para algo que sempre existiu. Ele afirma que não existem dados que embasam as afirmações de que grupos faccionados comandam determinadas áreas de presídios. “Tudo que teve até hoje foram especulações”, afirmou.
Em reportagens anteriores, O POPULAR divulgou que familiares de presos e agentes penitenciários já falavam sobre a presença das facções criminosas Primeiro Comando da Capital (PCC) e Comando Vermelho (CV) no Complexo Prisional de Aparecida de Goiânia. O Estado passou a falar sobre a presença dos grupos em presídios de Goiás no ano passado. Quando consultados pelo POPULAR, familiares falam de forma clara sobre os comandos do PCC e do CV no Complexo Prisional.
Na semana passada, O POPULAR divulgou reportagem sobre o avanço das facções em Goiás. Texto mostrou que a atuação do CV em Goiânia ficou evidente com a deflagração da Operação Descarrilamento da Delegacia Estadual de Investigações de Homicídios (DIH), que apurou pelo menos 84 assassinatos em 2016 e 2017 a mando da facção.
Haroldo Caetano afirma que dentro de um ambiente precário é comum que pessoas se reúnam e formem gangues. E esses grupos acabam por disputar espaço internamente. De acordo com ele, falar sobre a presença de facções como o problema do sistema prisional é um “discurso reducionista” que interessa a quem administra os presídios.
Camila Nunes Dias: “Não é ausência do Estado. É o Estado fortalecendo facções” Socióloga e professora da Universidade Federal do ABC (UFABC) é especialista em sistema prisional e autora de livro sobre o PCC.
Grupos criminosos que atuam dentro dos presídios atuam também fora?
Não necessariamente. Existe diferença entre os grupos, não são do mesmo tamanho e nem tem a mesma estrutura. No caso do PCC (Primeiro Comando da Capital, facção criminosa paulista), eles têm, em geral, atuação fora das prisões. Não sei no caso de Goiás, mas em vários Estados eles têm atuação nas prisões e acabou transbordando em várias atividades fora das prisões. Mas essa presença fora dos presídios varia de um Estado ao outro também.
A falta de estrutura física, como a não separação entre presos provisórios e condenados, é um cenário propício ao crescimento das facções?
Com certeza. Eu sempre digo que não é a ausência do Estado, é o Estado quem cria essas condições. E quando eu digo Estado, é o Executivo, por deixar os presídios dessa forma, e por não ter controle dos agentes. A corrupção é sistêmica. E também o Legislativo, pelas leis que eles criam, como o aumento de tempo de prisão, como se isso fosse resolver o problema da violência. Na verdade, leis que deixam as pessoas mais tempo presas agravam isso. E o Judiciário, porque quem solta, quem determina a pena, a prisão é um juiz O Judiciário tem papel central nessa situação.
É o Estado que entrega os jovens nas mãos das facções. É o Estado que está atuando de forma contundente para o recrutamento das facções. E depois não adianta vir com discurso hipócrita de “fomos surpreendidos” e “vamos agir”, com anúncio de medidas e mobilização, que geralmente não resolvem nada. A cada rebelião vem autoridade tirar da cartola um discurso demagógico. Por exemplo, aí (em Goiás) vocês tiveram a separação da administração penitenciária da Secretaria de Segurança Pública. Precisa de uma rebelião com nove mortos para isso? Todo mundo sabe que quem prende não pode custodiar. E atualmente o Estado não tem mecanismo para reverter o problema da segurança e sistema prisional, no controle das facções. Tudo que a gente vê é balela, para dar impressão de que alguma coisa está sendo feita. Não tenho dúvida de que em meses, anos, vai acontecer de novo (uma rebelião), porque as condições permanecem iguais. Não é ausência do Estado. É estado fortalecendo as facções.
Com base no que a senhora já estudou sobre PCC, faz sentido que o grupo esteja aqui e que a presença tenha sido percebida mais recentemente?
Há algum tempo, uns dois, três anos, participei de uma banca de um trabalho da Universidade Federal de Goiás sobre o tráfico. E o trabalho falava justamente que Goiás não era um local que as facções tinham presença forte. Predominavam os grupos particulares, sem vínculo com as facções. Pode ser que o PCC e Comando Vermelho tenham intensificado em Goiás por conta da disputa que passou a ficar mais forte nos últimos anos entre os dois. Faz sentido dizer que os dois grupos foram para os Estados onde não tinha estrutura de facção bem armada para ganhar espaço. Porque em 2015 ficou mais agressiva a competição do PCC com o Comando Vermelho, que passaram a disputar adesão. E em 2016 entraram em guerra.
Tem quem diga que a disputa entre grupos sempre existiu nos presídios e que o Estado fala sobre a presença de facções para tentar tirar sua responsabilidade. A senhora pensa assim?
Concordo que grupos em presídios sempre existiram. A diferença do PCC, por exemplo, é que eles têm uma articulação maior, para além dos presídios, que envolvem vários Estados, atividades fora da prisão. Uma coisa fortalece a outra. Mas estou de acordo com pessoas que falam que é tentativa de tirar responsabilidade do Estado. Mesmo que eu admita, por exemplo, que essa rebelião foi provocada pelo PCC, as causas do problema não são o PCC em si. É anterior. A própria existência do PCC é reflexo dessa responsabilidade do Estado. Independente de quem estava com a faca na mão, que tem responsabilidade, obviamente, mas quem permitiu que isso acontecesse tem uma responsabilidade muito maior.
Fonte: O Popular
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